Os primeiros linces-ibéricos reintroduzidos em Portugal já correm livres pelos bosques de Mértola. Neste sábado, há mais um casal a chegar ao cercado, que lhes há-de seguir as pegadas.
Jacarandá e Katmandu são cautelosos. Não se lançaram em grandes aventuras depois de no domingo passado lhes terem aberto a porta do cercado de aclimatação, onde estavam desde 16 de Dezembro, em Mértola. Os dois linces deixaram o terreno de dois hectares mas continuam por perto, têm caçado e cruzam-se muito pouco nas suas caminhadas. A partir deste sábado vão ter vizinhos: há mais um casal a caminho do cercado.
Esta primeira semana de liberdade total foi fundamental para os técnicos do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) perceberem como está a ser a adaptação à Natureza dos linces-ibéricos (Lynx pardinus) criados em cativeiro. A avaliar pelas imagens captadas pelas câmaras de vigilância instaladas em locais estratégicos, pelos sinais GPS e VHF transmitidos pelos colares que têm ao pescoço e pelos registos de observações no campo, tudo parece estar a correr bem.
“Têm conseguido caçar [agora têm de o fazer por si, sem qualquer intervenção dos técnicos], afastaram-se um pouco mas permanecem na zona e não andam juntos, o que é relativamente normal”, explica Pedro Rocha, director do departamento do ICNF no Alentejo. Nenhum deles se aproximou ainda das estradas, onde foram instalados novos sinais de trânsito a avisar da presença de linces na zona.
Estes dois animais foram os primeiros de um grupo de oito a dez linces a serem reintroduzidos no habitat natural em território português até ao final do ano, depois de décadas de ausência, ao abrigo de um programa conjunto com Espanha que visa reforçar a população do felino mais ameaçado do mundo, ainda em risco crítico de extinção.
O objectivo é criar condições para que os bichos se reproduzam. A equipa responsável pelo acompanhamento está a fazer figas: “É difícil saber se acasalaram, vamos perceber agora através do comportamento da Jacarandá. Se andar mais parada e procurar abrigo mais frequentemente, é provável que esteja grávida.”
O período que a fêmea nascida no Centro Nacional de Reprodução do Lince-Ibérico (CNRLI) em Silves e o macho nascido no centro de Zarza de Granadilla, perto de Plasencia, Espanha, passaram no cercado correspondeu ao início da época da reprodução. Normalmente as crias nascem em Março.
Desde 2009, nasceram 58 linces no centro de Silves (que se tem revelado a melhor “maternidade” para o lince ibérico), dos quais 38 já foram libertados. Actualmente estão grávidas quatro fêmeas – uma delas é Fruta, a mãe da inquilina que se segue no cercado de Mértola: Kayakweru. Chega este sábado, acompanhada por Kempo, o macho espanhol vindo de Doñana.
“A introdução deste segundo casal no cercado vai acontecer exactamente nos mesmos moldes e, se tudo correr bem, dentro de duas a três semanas serão libertados”, diz Pedro Rocha. Segue-se mais uma etapa decisiva: a da interacção entre os quatro. “Dificilmente ficarão todos no mesmo sítio, uma vez que eles são muito territoriais”, explica o responsável do ICNF.
É provável que os animais comecem a dispersar pelos matagais e bosques da região, ao longo do Parque Natural do Vale do Guadiana, ou mesmo que cheguem a Espanha, onde a introdução do lince está mais avançada. O ICNF estabeleceu já protocolos com os proprietários de 8500 hectares (ha) e espera chegar aos 13 mil ha, na zona de Mértola, para garantir que a gestão dos terrenos os torna apetecíveis para a espécie e para o coelho-bravo. É que sem coelho não há lince: o primeiro representa 90% da alimentação do segundo.
Cada lince come pelo menos cinco coelhos por semana. O problema é que o coelho-bravo, alvo de uma nova estirpe de febre hemorrágica viral em 2012 (mais letal do que a que dizimou a população no início da década de 1990), ainda não recuperou totalmente. “A doença continua a matar”, garante Pedro Esteves, investigador que lidera o projecto SOS Coelho, desenvolvido pelo Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) em parceria com a Associação Nacional de Proprietários Rurais e o ICNF.
Através deste projecto estão a ser monitorizadas as populações de coelho-bravo em 120 locais, para perceber a sua evolução em termos de densidade e decidir que medidas tomar. Segundo o especialista, apesar de se registar uma ligeira recuperação naquela zona alentejana, não é certo que esta seja sustentada. “Temos coelhos adultos mas poucos jovens”, afirma. O número actual de coelhos “é compatível com a libertação do lince” mas não se sabe se esta situação se manterá. “É imprevisível”, avisa.
A nova estirpe, que ataca sobretudo os coelhos jovens pondo em causa a continuação da espécie, parece incontrolável. Até já chegou aos Açores, onde matou recentemente milhares de indivíduos. Existe uma vacina, que tem sido utilizada nos coelhos para consumo doméstico, mas Pedro Esteves diz que esta não é eficaz na população selvagem. Para o investigador, o censo à população de coelho-bravo já devia ter começado há pelo menos três anos. “Não foi por falta de aviso”, sublinha.
Pedro Esteves prevê que sejam precisos mais “quatro ou cinco anos” para que a população de coelho-bravo estabilize e volte aos números registados antes de 2012. É que em 2009 e 2010, quando Portugal e Espanha começaram a trabalhar juntos para reintroduzir o lince, a população de coelho-bravo estava a recuperar.
Fonte: Público